A alegoria do patrimônio - Françoise Choay
- Amanda Freire
- 17 de jun. de 2019
- 5 min de leitura
Françoise Choay é uma historiadora francesa, professora de Urbanismo e Arquitetura da Universidade de Paris VIII. Na obra “A alegoria do Patrimônio” a autora investe em uma arqueologia do conceito de patrimônio histórico, uma investigação epistemológica que abrange mais de cinco séculos, embora somente a partir de 1837 tenha sido criada, na França, a primeira comissão dos monumentos históricos, entre os quais: os remanescentes da antiguidade clássica, os edifícios religiosos da Idade média, e alguns castelos. Logo depois da Segunda Guerra Mundial o número de bens avaliados como patrimônio aumentam vertiginosamente. Outras formas de arquitetura, que não a erudita, foram sendo incluídas no conceito de patrimônio, a exemplo de todas as categorias de edifícios públicos ou privados, santuários, habitações populares, manifestações culturais, e até mesmo cidades inteiras entraram no domínio patrimonial.
Embora tenha reconhecido o valor histórico e artístico dos bens que são considerados patrimoniais, ou seja, bens passíveis de identificação, proteção, conservação, valorização e transmissão às futuras gerações, a autora traz uma forte crítica aos excessos do culto ao patrimônio e os laços existentes entre o que ela chama de “indústria cultural” e a crise da arquitetura e das cidades. Há uma tendência inegável para a supervalorização e espetacularização dos potenciais turísticos, o que muitas vezes está em desacordo com as políticas de conservação e restauro.
Para entender como insurge a ideia de patrimônio histórico na sociedade ocidental, é preciso recuperar algumas provocações da historiadora Choay, portanto, eis a seguir alguns acontecimentos importantes.
Para a autora, o nascimento do monumento histórico remete a Roma, por volta do ano de 1420 quando os humanistas recuperam a discussão em volta das ruínas romanas antigas. Mas ora, como assim 1420? E quanto às ruínas da antiga Babilônia? E quanto aos edifícios egípcios, gregos? e, mais ainda, e quanto aos artefatos e moradias pré-históricas? Bom, fica claro que o monumento histórico não é posterior a 1420, mas o que se quer dizer é que trata-se da evidência do nascimento de um interesse intelectual e artístico sobre patrimônio que insurge dada a disseminação do pensamento humanista durante o movimento intelectual renascentista entre os séculos XIV e XVI. Para tanto, convém dizer que esse interesse sobre patrimônio e monumento histórico estava restrito à elite naquele momento. Dito isso, é fácil pensar que, nesse momento, a discussão sobre os vestígios do passado se concentraram na antiguidade romana, já que o resgate da cultura antiga era um dos principais projetos do movimento renascentista.
Entre o século XVI e o fim do iluminismo, no entanto, o estudo das antiguidades passa a girar em torno de uma abordagem comparável a das ciências naturais: busca uma mesma descrição, controlável e, portanto, confiável e verossímil, de objetos históricos. Os intelectuais racionalistas e positivistas, lamentando a degradação desses objetos, lançam uma batalha política e conceitual pela conservação e proteção do patrimônio.
Adiante, durante a Revolução Francesa já dá para imaginar o cenário: igrejas incendiadas, estátuas derrubadas ou decapitadas, castelos saqueados... Mas, embora possa-se pensar que a Revolução tenha sido mentora da destruição de monumentos históricos importantes, vale pensar que, por outro lado, foi o momento de tensão ideológica que os intelectuais precisavam para colocar em pauta a demanda por uma política de conservação patrimonial. Qual a saída então? Bom, o primeiro passo foi transformar esses bens em patrimônio nacional e, em função deles, construir uma memória nacional Republicana (ler “A Formação das Almas”de Murilo de Carvalho). Um dos primeiros atos jurídicos da constituinte, em 2 de outubro de 1789, foi colocar os “bens do clero” à disposição da nação, por exemplo. Esse efeito da nacionalização transformou esses objetos em bens materiais que, sob pena de prejuízo financeiro, estavam sob proteção, sendo preciso preservá-los em respeito à memória e soberania nacional. Museus, galerias, bibliotecas, medalhas, inscrições em pedra, estátuas e bustos, vasos, quadros, máquinas, mapas, tapeçarias…
O que não poderia deixar de entrar na linha do tempo é a Revolução Industrial que acontece em algum momento entre 1820 e 1840. Sem dúvida, a entrada na era industrial e a brutalidade com que ela vem dividir a história das sociedades e de seu meio ambiente remexeu com o conceito de patrimônio cultural e histórico. Para a autora, a cultura perde seu caráter de realização pessoal, torna-se empresa e logo indústria, dando visibilidade às coisas oficiais, às simbologias do saber e prazer e aos produtos. Tudo isso acontece sob o imperativo de se multiplicar o número de visitantes, o que implica na paulatina degradação dos espaços históricos (mas também na prática massiva das selfies, não necessariamente reflexivas sobre o homem que já fomos ou o que poderíamos ser, mas pelo prazer de uma condição humana contemporânea: a efemeridade).
Eis um conflito gigante que abrange política, poder e diz respeito a quem decide a destinação desses documentos históricos como instrumentos de rentabilidade. Mas não seria essa fala ingênua? É mesmo possível pensar num culto ao patrimônio descolado da realidade moderna, tecnológica e dos novos modos de ser e estar no espaço e no tempo? Poderia ser o patrimônio histórico objeto de contemplação e saber histórico para todos?
Ouso dizer que essa luta pela integridade ou reincorporação do patrimônio abrange diversos atores sociais, sobretudo o Estado (representado por instituições como institutos do patrimônio histórico e artístico), as Universidades (representadas pelos intelectuais e pesquisadores) e os agentes industriais e comerciais.
Não poderia haver esse conflito epistemológico sobre o patrimônio artístico e histórico não fossem: o Estado confuso entre aquilo que lhes é de interesse pessoal, econômico e aquilo que é de interesse social - Os intelectuais que têm convicção da importância do patrimônio para sociedade, mas sobretudo como documentação para suas pesquisas, suas vaidades e seus prestígios na comunidade acadêmica - E as Indústrias e o comércio que têm certeza que a política de tombamentos é uma pedra no caminho do desenvolvimento.
Mas e a classe popular? Para eles, o que esses bens patrimoniais documentam? O anel do papa, o cofre do coronel, a cerâmica portuguesa, o paletó de linho, a cama do rei… Ah, é preciso lembrar que o culto a uma memória elitizada não é de interesse da população a quem deveria-se e precisa-se responsabilizar a conservação. A mim, fica claro que nossa herança urbana realmente se apresenta como uma alegoria, porque revela nossas angústias, nossos desejos e nosso narcisismo. O Brasil está cheio de políticas patrimoniais colonizadas pelo modelo europeu de valorização histórica, tal é o fardo da musealização erudita, mas é preciso democratizar esses espaços de memória! É preciso recuperar os nossos laços com a história nacional e aproximar-se da classe popular. Recuperar as manifestações e relatos populares e construir uma história vista de ponta cabeça a partir dos anônimos. Eu poderia dizer que esse é um dos mais importantes papéis da educação patrimonial: recuperar uma memória que precisa ser problematizada, remexida, popularizada, democratizada e (des)construída.
Tal é o conflito que revela a imagem do homem. Quem sabe essas alegorias realmente revelem esse homem, diferente daquele que edificou em outros tempos. Um homem que busca um caminho que possa libertá-lo das amarras do espaço e do tempo, mas não consegue se ver livre da exigência moderna de encontrar seu lugar na sociedade. Um homem que busca um caminho que possa direcioná-lo no sentido da identidade fluida para que ele seja o que quiser ser, sem esquecer que, para ser diferente do que já fora, é preciso lembrar.
Convido-os a ler, A alegoria do patrimônio!
Françoise Choay. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieria Machado. 4ª ed. São Paulo: Estação liberdade: UNESP, 2006.
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