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Biblioteca da Cidade

Resenhas críticas de obras que ajudam a pensar a cidade enquanto objeto de estudo multidisciplinar, passando por referências bibliográficas em filosofia, história, sociologia e urbanismo.

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Por amor às Cidades - Jacques Le Goff

  • Foto do escritor: Amanda Freire
    Amanda Freire
  • 1 de mar. de 2019
  • 5 min de leitura

Jacques Le Goff foi um historiador francês que se dedicou assiduamente a entender a era medieval ocidental. A obra Por amor às cidades (1998) é um grande exemplo do empenho de Le Goff em desvendar a Idade Média a partir dos modos de pensar e de sentir. Parte-se da concepção de que a partir do estudo das mentalidades e costumes de uma sociedade, revela-se a estrutura social do período histórico.


Para falar sobre Le Goff e como as provocações dessa obra chegam até a “Cidade” enquanto objeto de estudo, convém destacar que o autor foi membro da terceira geração de um importante movimento historiográfico francês que, no início do século XX, incorporou os estudos sociais aos históricos. Ora, é preciso dizer que antes dessa ruptura epistemológica os estudos historiográficos eram marcados pelo pensamento positivista do século XIX, ou seja, antes havia um apego à verdade, aos documentos, aos fatos e acontecimentos considerados históricos, sem os questionamentos críticos que tornaram possível a história como toda atividade humana, muito além do simples observável e concreto. Esse movimento nasce também como uma crítica à compartimentação do conhecimento em diferentes áreas, e passa a incorporar a multidisciplinaridade às investigações científicas do homem.


Por amor às cidades (1998) é, na verdade, o resultado de conversações entre Le Goff e Jean Lebrun (embora Lebrun tenha construído esse diálogo com Le Goff, acredito que ele seja mais jornalista do que historiador). Repleto de ilustrações que retratam a cidade medieval, o livro é belíssimo. São pinturas oriundas de arquivos de museus e bibliotecas da Europa, sobretudo em países como Itália, França e Inglaterra. Curiosamente, e essa é a primeira surpresa do livro, intercalam-se ilustrações da cidade medieval e da cidade contemporânea, pois o autor trabalha com a tese de que há mais semelhança entre a cidade medieval e a contemporânea do que entre a cidade medieval e a antiga, mesmo que essas últimas conservem a simbologia da realeza cujos Reis e Rainhas, ou soberanos, inspiram poder.


Para Le Goff, no entanto, é na baixa Idade Média em que houve um momento de ruptura entre o modelo de relação do homem com o espaço, como também, mais ou menos, uma ruptura da relação contemplativa do homem com o campo. Para ele, é na era medieval que instaura-se, aos poucos, o surgimento de uma nova mentalidade: o imaginário urbano. A partir do Século X, mas principalmente do século XI, há um período de urbanização que não está em continuidade com a era antiga. Esse desenvolvimento acontece a partir de núcleos. O cristianismo urbaniza os mortos, que na cidade antiga eram levados para lugares afastados. Novas formas de sociabilidade e de higiene vão aparecer. As praças públicas, onde na idade antiga os cidadãos se encontravam para discutir em conjunto os negócios e problemas urbanos, dão lugar às igrejas.


A cidade vira símbolo de segurança e erguem-se extensos muros aos moldes dos condomínios nas cidades contemporâneas. Nas ruas, a mendicância é desejada pois permite ao burgueses mercadores mais bem sucedidos, e aos membros da nobreza, as suas salvações. Ao oferecerem esmolas e caridade, os privilegiados garantem a remissão de seus pecados. A miséria era desejada para que fosse possível a piedade e a salvação: “Ora, as ordens mendicantes são as cidades! Elas é que primeiro desenvolvem uma verdadeira imagem daquilo que deve ser a cidade, imagem de paz, de justiça e de segurança” (LE GOFF, 1998, p. 90).


Eis a formação de uma cultura urbana. Doentes e indesejados eram afastados para a periferia, aos moldes da segregação urbana contemporânea. A família descentralizada da aristocracia pouco a pouco vai dando espaço ao modelo de família nuclear (Pai, mãe e filho) como ideal burguês, e com o apoio da sagrada família instaurada pela igreja, aliás, o próprio casamento vai passar a existir como uma instituição com vínculos jurídicos, contratuais e sagrados. Eis um importante elo entre as unidades habitacionais de famílias nucleares tradicionais que vão configurar a cidade que conhecemos.


O pensamento escolástico (método científico das universidades que relacionavam a fé cristã com a razão) está em desenvolvimento no século XII. A arte gótica influencia o desenho da cidade. Ordem, luz e principalmente verticalidade elevam as famosas torres medievais utilizadas pela pequena e média nobreza como moradia. Os poderosos se elevam o mais próximo de Deus, também aos moldes dos arranha céus que simbolizam o desenvolvimento econômico na cidade contemporânea.


Pouco a pouco os burgos vão crescendo e a realeza, apesar da cobrança dos impostos, parece não se dar conta do poder que se instaura paulatinamente nas atividades dos comerciantes. É no modelo burguês de sociedade que a cidade moderna se inspira, disso não temos dúvida. As famílias nucleares vão ocupar e estender as cidades, e mais tarde a nobreza feudal será excluída de todas as funções públicas. Grandes e médias habitações crescem ao redor dos castelos dando espaço para o individualismo. Apesar desse relato fazer parecer que esse movimento urbano aconteceu de forma gradual, é preciso dizer que a burguesia também teve seus altos e baixos, e é difícil dizer ao certo quando ela passa a ocupar o lugar de destaque na cidade.


Aos poucos o poder dos castelos passam a existir na cidade, e os camponeses não acompanham os burgos, sendo a eles atribuída a ideia de rusticidade. De fato, com a transferência do poder dos castelos para os burgos, os interesses dos líderes religiosos também acabam acompanhando esse movimento e estava instaurado o cenário perfeito para uma era moderna cujas insatisfações urbanas e sociais culminam, mais tarde, com a revolução francesa, sendo vitoriosa a burguesia comercial europeia. Mas até isso muitas águas rolaram no ocidente.


A contribuição de Le Goff nos leva a perceber que a Idade Média, frequentemente retratada como a era das trevas, foi um momento de importantes rupturas que assinalam o aparecimento de um imaginário urbano muito semelhante ao contemporâneo. Diversas obras de Le Goff mostram o esforço que o autor teve em retratar a Idade Média bem diferente do estereótipo da escuridão, embora seja verdade que foi um período extenso de atentado contra direitos humanos, pois os relatos da inquisição e do alto índice de mortalidade não deixam negar.


É preciso mesmo recorrer a esses momentos históricos de ruptura na sociedade ocidental. As cidades contemporâneas podem ser decifradas a partir dessa (des)construção que o historiador, no limite e, ao mesmo tempo, distante das suas percepções indutivas, é tão competente em fazer.

Mas e esse título “Por amor às cidades”? Bom, Le Goff acreditava, otimista, que a cidade sempre renovará a sua sedução. Há de florescer, na cidade do século XXI, e como sempre, novos encantos que fascinaram os cientistas da cidade, como também os citadinos.

Convido-os a ler “Por amor às cidades”!


Bibliografia:

LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1998.

 
 
 

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Amanda de Almeida

Graduada em Eng. Civil pela Universidade Federal de Campina Grande/UFCG. Mestranda em História/UFCG na área de Patrimônio Histórico e Cultura, Monumento e Memória. Apaixonada por livros, pela rebeldia, pela inovação, pelo espontâneo e pela (des)construção do saber.

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